Irlanda: A fronteira da discórdia

“Se acabarmos com uma fronteira física, aqueles que são contra o processo de paz vão matar um guarda fronteiriço. Ou rebentar com um posto de controlo. É inevitável”. Robert McClenaghan tem poucas dúvidas sobre os riscos que poderia trazer a reintrodução de uma fronteira entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido), e a República da Irlanda a partir de março de 2019, quando o Brexit se tornar efetivo. O ex-militante do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), hoje membro do partido Sinn Fein, alerta que “há uma pequena facção de dissidentes do grupo armado totalmente oposta ao processo de paz” alcançado há 20 anos. Por isso, a possibilidade do regresso de checkpoints ao longo dos quase 500 quilómetros que serpenteiam entre o Norte e o Sul da Irlanda fez regressar os fantasmas da violência que durante três décadas assolou a região.

“Temos que ser realistas: houve violência no passado por motivos semelhantes. Por isso, a questão do Brexit tem que ser muito bem pensada”, avisa também James Cumiskey. Da infância passada em Newry, localidade próxima da fronteira com a República da Irlanda, recorda a presença constante do exército britânico. “Lembro-me dos helicópteros a sobrevoar a nossa casa, dos soldados sempre presentes nos campos, nas estradas”. Na altura, não imaginava que aquela realidade “fosse algo invulgar”, admite ao JN. A pequena cidade onde cresceu pertence ao condado de Armagh, uma das zonas mais fustigadas pelo longo conflito que opôs a comunidade católica (defensora da união da Irlanda) à protestante (que deseja continuar a integrar o Reino Unido). Durante três décadas, os confrontos conhecidos como The Troubles, fizeram cerca de 3.600 vítimas mortais e mais de 20.000 feridos.

Quando cruzamos a linha que divide hoje as duas Irlandas, o único indício de que estamos a entrar num país diferente é o sinal que indica que a velocidade máxima muda de milhas para quilómetros. As comunidades vivem permanentemente ligadas. Há quem resida no Norte e viaje a Sul para receber atenção médica. Há crianças que todos os dias vão à escola do outro lado da fronteira invisível. Há agricultores cujas quintas se dividem entre os dois países. Recordando que na Irlanda do Norte 56% dos eleitores votaram contra o Brexit, James Greer, investigador na Universidade Queen’s de Belfast não tem dúvidas: “as consequências económicas de uma redução do comércio transfronteiriço resultante de uma fronteira física teriam um enorme impacto em toda a ilha e seria especialmente dramático nas áreas junto à fronteira”.

Para além da perturbação na vida de milhares de pessoas, Cumiskey antecipa as consequências de uma fronteira a nível psicológico: “para as pessoas que se identificam como irlandesas, a representação física de qualquer tipo de barreira tem um peso simbólico que não é bem-vindo”, assegura. O Acordo de Belfast, recorda, que permitiu colocar um ponto final ao conflito armado em 1998, baseava-se na ideia de que Irlanda e Reino Unido estariam dentro da União Europeia. A saída de um dos membros “coloca em perigo o processo de paz”, argumenta.

Reconciliação adiada

McClenaghan mostra com orgulho o mural dedicado a Bobby Sands, ao lado da sede do Sinn Fein, em Belfast. “Foi ele que me ensinou a falar irlandês, quando estivemos juntos na cadeia”, conta ao JN o ex-membro do IRA. Terrorista para uns, herói para outros, o certo é que a greve de fome que vitimou o paramilitar republicano em 1981 chamou a atenção internacional para o conflito que ali se vivia

Estamos em Falls Road, a mais conhecida rua da zona oeste de Belfast, onde se concentra a maioria da comunidade católica. Não muito longe dali, erguem-se os conhecidos como “muros da paz”, que ainda hoje separam católicos e protestantes na capital da Irlanda do Norte. Construídos para proteger a população da violência sectária, os muros são ainda hoje um símbolo da barreira psicológica que continua a dividir as duas comunidades.

Depois de 12 anos na prisão, acusado de posse de explosivos, McClenaghan abandonou a luta armada e passou a dedicar-se ao processo de paz, participando regularmente em projetos que procuram aproximar as comunidades nacionalista e unionista, grande parte deles financiados pela União Europeia. “Até agora recebemos 1.3 mil milhões de euros para fomentar a transição para uma situação pós-conflito”, explica. Mas o que o preocupa são as consequências sociais: “podemos perder a capacidade para reconciliar as duas comunidades”.

Para além dos murais políticos, na Irlanda do Norte não faltam monumentos e memoriais que recordam a violência que assolou a zona durante 30 anos. Ao cruzar os “muros da paz” — através de portões que ainda hoje fecham à noite—, entramos em território unionista, onde o azul e vermelho da Union Jack ondeia ao sabor do vento. Na zona de Shankill Road, alguns pubs chegam a ser completos cultos da cultura britânica onde, para além das bandeiras, abundam as homenagens à rainha de Inglaterra ou aos militares britânicos falecidos na Primeira Guerra Mundial.

Na área protestante é mais fácil encontrar defensores do Brexit, mas também há preocupação sobre o que o futuro reserva à região. “A solução não é fácil, mas o que não se pode fazer é afastar ainda mais a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido. Isso seria péssimo para a nossa economia”, diz Emily Smith, residente da área.

Após um acordo alcançado in extemis esta sexta-feira, a primeira-ministra britânica, Theresa May, prometeu que não haverá “fronteira rígida”. Mas o “estatuto especial” pensado para a Irlanda do Norte não agrada nem ao Partido Democrático Unionista, que sustenta o Governo britânico, nem aos que defendem um Brexit “duro” dentro das próprias filas do Partido Conservador.

No horizonte, o sonho da reunificação

Vincent McCullum aponta para o pin que leva na lapela. É um mapa da Irlanda com a inscrição “Easter Rising” e refere-se à revolta católica contra o domínio britânico que em 1916 constituiu um prelúdio para a autodeterminação da República da Irlanda, que se seguiu a uma sangrenta guerra de independência. Um século depois da revolta irlandesa, Vincent acredita que, desta vez, será a saída da UE a abrir caminho para a reunificação da Irlanda.

“O Brexit é a oportunidade para relançar o debate”, garante. “Pode ser a melhor solução para todos estes problemas associados à fronteira e à união aduaneira”, conclui o taxista, que costuma guiar turistas pelas zonas de Derry (Londonderry para os protestantes) mais marcadas pelos “The Troubles”.

McClenaghan partilha a convicção: “vemos a Irlanda unida como uma possibilidade real. Especialmente agora que os países europeus começam a olhar para aqui e perguntam: o que é que o Reino Unido ainda está a fazer a ocupar aqueles seis condados da Irlanda?”, diz o membro do Sinn Fein.

Já James Cumiskey, mentor da plataforma “Irlanda Próspera”, prefere argumentar do ponto de vista económico: “é uma ilha pequena, não faz sentido ter dois sistemas diferentes para tudo: dois sistemas de impostos, de saúde, duas moedas, duas entidades políticas… A divisão entre o norte e o sul é prejudicial para a Irlanda do Norte. Belfast foi durante muito tempo o poder económico da ilha, hoje em dia é a parte fraca”, refere.

Se nenhum dos lado venceu o longo conflito armado, o certo é que os católicos estão hoje a ganhar a guerra demográfica. Quando a Irlanda foi dividida, em 1921, dois terços dos habitantes da Irlanda do Norte eram protestantes e apenas um terço católico, o que permitiu ao Reino Unido conservar o domínio na região. Segundo o Acordo de Belfast, a região continuará sob a alçada britânica enquanto a maioria da sua população assim o desejar. Caso haja mudanças, ambos os governos seriam obrigados a implementar a escolha. E as estatísticas na Irlanda do Norte têm mostrado variações importantes nas últimas décadas. Segundo o último censo, realizado em 2011, 48% da população pertencia à comunidade protestante e 45% à católica. Por isso, McClenaghan acredita que a tendência é inequívoca: “o único grupo demográfico em que os protestantes ainda são maioria é o dos maiores de 65 anos. Em todos os outros âmbitos, os católicos já superam os protestantes”.

Dentro do sector protestante, contudo, a possibilidade da realização de um referendo sobre a reunificação não é vista com bons olhos. Emily Smith é contundente: “falar agora nessa ideia é oportunismo político”, argumenta. E vai mais longe: “os que se preocupam com o Brexit não pensam nos riscos de alterar o nosso status quo?”

Por sua vez, James Greer mostra frustração pelo facto do tema dominar o debate político na Irlanda do Norte, enquanto temas sociais são deixados de lado. Além disso, embora admita que a demografia na região está a mudar, desvaloriza os números: “é certo que a proporção católica cresceu, mas também cresceram aqueles que não se identificam com nenhuma das tradicionais identidades protestante-unionista e católica-nacionalista”, afirma o investigador da Universidade Queen’s de Belfast.

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