Espanha liberta-se do legado franquista no meio da polémica

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Entrada: Mais de 40 anos após o fim da ditadura franquista, o Governo de Pedro Sánchez prepara-se para enfrentar o grande tema pendente da democracia espanhola: exumar os restos do ditador e alterar o significado do Vale dos Caídos. Uma medida histórica, que alguns acusam de reativar a retórica das “duas Espanhas”

Atravessado o longo túnel à entrada da basílica do Vale dos Caídos, o corrupio de visitantes denuncia o local onde se encontra o túmulo de Francisco Franco. Apesar das fotografias no interior do templo serem proibidas, os flashes sucedem-se junto ao lugar onde o antigo caudillo espanhol foi enterrado, em 1975. Todos querem um retrato junto da lápide que repousa sobre os restos mortais do ditador, onde se acumulam vários ramos de flores.

Escavado na rocha, o austero complexo monumental do Vale dos Caídos continua hoje a homenagear os vencedores da guerra civil (1936-1939), deixando em evidência as fragilidades da democracia espanhola, que o Governo de Pedro Sánchez tenta agora corrigir.

Apesar do sol a pique, a temperatura dos últimos dias de verão no vale de Cuelgamuros é amena. É aqui, a mais de 1.400 metros de altitude e a cerca de 55 quilómetros de Madrid, que se ergue o gigantesco mausoléu que alberga os restos mortais de 33 mil vítimas da guerra civil, que descansam junto ao ditador Franco, e ao fundador da Falange, José Antonio Primo de Rivera. A presidir o conjunto, uma imponente cruz de 150 metros, que se avista a vários quilómetros de distância.

“Não é possível numa democracia madura que Franco tenha um túmulo de Estado”, afirmou a vice-presidente do Governo, Carmen Calvo, ao justificar a iniciativa do Executivo socialista de proceder à exumação do caudillo com caráter de urgência. De acordo com o decreto lei aprovado no Congresso de Deputados espanhol esta quinta-feira, o Vale dos Caídos será transformado num “lugar de recordação e homenagem às vítimas” da guerra civil.

Desde que se soube que o Governo espanhol se prepara para desenterrar Franco, o número de visitantes não parou de aumentar. Movidos por respeito ou apenas por curiosidade, o certo é que as visitas ao monumento dispararam 76% no mês Agosto, superando as 60 mil pessoas.

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O despertar das “duas espanhas”

Andrés Sanz, engenheiro de obras públicas, fez questão de tirar a fotografia da praxe junto ao túmulo do homem que liderou Espanha com braço de ferro durante quase 40 anos. “É uma figura polémica, mas não deixa de ser uma personagem histórica” justifica. Por isso, a exumação do ditador não lhe parece uma prioridade. “O país tem problemas mais graves, que deveriam ser tratados antes de se dedicar tempo, esforço e dinheiro a algo que já faz parte da história”, diz ao JN.

Desde que foi anunciada, que a iniciativa do Governo de Sánchez tem enfrentado duros ataques por parte de sectores da direita espanhola, a começar pela própria Fundação Francisco Franco, que o Governo quer ilegalizar. Em declarações enviadas por email ao JN, o presidente da entidade, Juan Chicharro, não hesita em classificar a trasladação de “ato de pura vingança”, argumentando que “não se pode exumar um cadáver sem a autorização da família”. Por ter sido aplicada através de um decreto lei, considera a medida “ditatorial”, acusando-a de “não cumprir os requisitos previstos na Constituição”.

Local de culto para a extrema-direita espanhola, o Vale dos Caídos tem sido defendido por grupos assumidamente franquistas como o “Movimento por Espanha”, encabeçado por Pilar Gutiérrez. “No vale não se toca” lê-se nas costas da t-shirt que enverga à entrada do monumento. Filha de um ex-ministro de Franco, tornou-se nas últimas semanas numa das maiores críticas do “decretazo de Pedro Sánchez”. Crente que ainda é possível impedir a exumação, acusa a iniciativa do Governo de “reabrir feridas” e de “reavivar a retórica das duas espanhas”.

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Contudo, apesar dos ataques de alguns sectores e da resistência da família do ditador, a trasladação parece imparável. As “ameaças não vão mudar nada”, afirmou a ministra porta-voz, Isabel Caláa.

Junto das associações que agrupam familiares de vítimas do franquismo, a medida foi bem recebida e peca apenas por tardia. “Não queremos vingança, queremos justiça”, explica Arturo Peinado, presidente da associação Fórum pela Memória, cujo avô foi fuzilado pelas forças franquistas pouco depois de finalizada a guerra civil. Satisfeito com o anúncio da exumação de Franco, receia apenas que se trate de “um avanço pontual”, que deixe de lado outras medidas que considera indispensáveis, como a transformação do Vale dos Caídos “num lugar de memória, dedicado às vítimas” ou a “anulação das sentenças franquistas”.

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Vítimas continuam a pedir justiça

Albino Calvo nasceu em 1936, poucas semanas antes do golpe de Estado contra o Governo da Segunda República, que acabaria por mergulhar Espanha no conflito bélico que ainda hoje gera divisões em Espanha. O pai, Jesús Calvo Vera, alistou-se como voluntário no Exército da República para “lutar contra os sublevados”, liderados pelo general Francisco Franco.

Natural de Salmerón, em Guadalajara, sobreviveu à guerra civil, mas não ao pós-guerra. Acusado de “revolucionário”, Jesús foi fuzilado em 1940 pelas forças franquistas quando contava apenas 27 anos. O filho, que agora recorda os acontecimentos com a voz entrecortada e o olhar inundado, em plena Puerta del Sol, em Madrid, não alcançava sequer os 4 anos.

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Todas as quintas-feiras, junta-se ao protesto que há oito anos reúne semanalmente familiares de vítimas da repressão franquista para exigir justiça às autoridades espanholas.

Apesar de baseada na legislação repressiva de Franco, o julgamento que condenou o pai de Albino é ainda hoje considerado legal, uma vez que as sentenças emanadas pelos tribunais ditatoriais nunca foram anuladas. 40 anos depois de implantada a democracia em Espanha, mais de 100.000 vítimas da violência do regime de Franco permanecem desaparecidas em valas comuns clandestinas um pouco por todo o país.

É por isso que Arturo Peinado, presidente do Fórum pela Memória, insiste na urgência de retomar a “exumação das centenas de milhares de vítimas que continuam enterradas em valas comuns”. A medida, lançada pela Lei de Memória Histórica de 2007, foi suspensa na prática pelo Governo do Partido Popular, que a deixou sem financiamento. A própria ONU, recorda o historiador, já mostrou preocupação pelas falhas das autoridades espanholas em matéria de investigação de violações de direitos humanos.

Quando lhe dizem que as medidas de caráter histórico vão reabrir feridas, Arturo explica que, na verdade, estas nunca se fecharam. “Enquanto uma pessoa tiver um pai ou um avô numa vala comum, como se fecha essa ferida?”, questiona.