O país da Europa mais afectado pelo desemprego viu emergir um movimento popular inédito, que há três semanas mantém ocupadas as praças das principais cidades. Com uma capacidade de organização surpreendente, boa parte da população espanhola que não se vê representada pela classe política, resolveu unir-se, sair à rua e participar activamente num colectivo que exige mudanças no sistema económico e político. Fomentam-se a reflexão, o debate de ideias e a proposta de alternativas. À medida que passam os dias, o Movimento 15-M vai perdendo visibilidade nos meios de comunicação, mas os seus integrantes continuam activos e as bases lançadas continuam a crescer. Bruno Correa é dos que participam desde o primeiro dia.
Maria João Morais, correspondente em Madrid
A voz enrouquecida, o olhar cansado, o sorriso contido, mas esperançado. Há três semanas que dorme numa tenda montada na praça Puerta del Sol, em Madrid, e há três semanas que se desdobra numa intensa actividade dentro do grupo de Comunicação, um dos vários criados no seio do chamado Movimento 15-M, nascido após as manifestações que no dia 15 de Maio se estenderam a toda a Espanha. Bruno Correa é um dos porta-vozes mais activos dentro do movimento e participa diariamente nas reuniões do grupo que integra, dá entrevistas à imprensa e participa nas assembleias populares. Fala com o JN diante de uma chávena reforçada de café, combustível necessário a quem dormiu apenas duas horas na noite anterior. Antes de tudo isto, já se movimentava como activista numa organização, para lutar por uma “mudança do actual marco político-económico”. Quando percebeu o tipo de organização que se estava a criar um pouco por toda a Espanha, deixou o emprego precário que tinha como empregado de mesa para se “dedicar por inteiro” ao movimento.
Bruno é apenas um dos milhares de pessoas que, de forma espontânea, decidiram juntar-se num colectivo de características inéditas, para exigir uma “democracia real”. As diferenças iniciais viram-se diluídas numa plataforma reivindicativa que faz do
anonimato, da horizontalidade e da participação inclusiva porta-estandarte.

O espaço físico, depois do virtual
Bruno não tem dúvidas de que o aparecimento da internet 2.0 e a proliferação das redes sociais constituiu o “motor de arranque” que motivou as pessoas a tomarem as ruas tentando fazer ouvir a sua voz. “É um processo que se estava a estruturar há alguns anos. Finalmente encontrou-se um espaço virtual sem limites, que a cidadania a começou a utilizar para recuperar a plena liberdade de expressão”, refere o activista. Agora “voltou-se a tomar o espaço físico e regressaram à ordem do dia valores éticos e morais que chocam com os valores do sistema estabelecido, cujo único fim é o capital”. A visão de Bruno sobre o momento que está a viver fá-lo estar convicto de que estamos perante o “início de uma revolução pacífica de alcance global”.

Puerta del Sol: uma mini-comunidade
A habilidade dos organizadores e a participação de milhares de pessoas tornou possível chegar-se a uma organização pensada até ao mais pequeno pormenor. Dentro da “mini-cidade” que permanece há três semanas montada na praça Puerta del Sol, em Madrid, tudo funcionar em comunidade. Há uma banca de alimentação, uma enfermaria, um espaço de apoio legal, pontos de informação e de apoio aos meios de comunicação. Há locais para a leitura de imprensa e uma biblioteca. Há grupos que se encarregam da limpeza e da ordem do espaço e cultiva-se até uma horta em torno a uma das fontes da praça. Tudo feito com o empenho de numerosos voluntários. O respeito para com o próximo tornou-se contagiante. Naqueles escassos metros quadrados conseguiu-se, enfim, reproduzir uma pequena sociedade baseada no espírito de solidariedade que se anseia poder estender ao resto do mundo.

Reflexão colectiva
Também o espaço para a reflexão procura funcionar de forma plural. Sem líderes nem hierarquias. Sem qualquer associação a partidos políticos ou sindicatos. Aqui, todos participam a nível individual. Para favorecer as discussões, foram criados grupos de trabalho: economia, educação, saúde, ecologia, etc, têm os seus próprios espaços de debate de ideias. Diariamente, continuam a desenrolar-se em paralelo várias assembleias temáticas. Depois de alcançado o consenso em cada comissão, as propostas são levadas à assembleia geral que toma lugar no Sol —onde não foi esquecida a língua gestual— e onde se
procura atingir um consenso final, recuperando-se assim a “soberania popular”, frisa Bruno Correa.
Em marcha está também o processo de alargamento das discussões até aos bairros da cidade. Em Madrid, todos os sábados, pelo meio-dia, têm início mais de 100 assembleias de cariz local.
Revolucionar ou reformar o sistema?
O descontentamento é transversal a todos os “indignados”: sentem que a classe política não representa os interesses da população; que o sistema capitalista não consegue dar respostas às necessidades da grande maioria das pessoas; e que é necessário agir para tentar mudar o rumo dos acontecimentos. Mas de que forma actuar?
Dentro do movimento 15-M conseguem-se identificar dois espíritos: de um lado activistas provenientes de colectivos e movimentos sociais críticos, que contestam a lógica capitalista e anseiam por uma verdadeira “Spanish Revolution” e, por outra parte, uma maioria de jovens cansados, indignados com o desemprego e a precariedade, que se inclina mais pela reforma do sistema existente.
Pouco a pouco, começam a descortinar-se vozes discrepantes dentro do próprio movimento. Levantar ou não os acampamentos? Manter ou não o sistema de assembleias criado? As divergências internas sobre a forma de actuar dentro de um colectivo que se quer tão plural tornam-se inevitáveis.
E a incerteza sobre as conquistas reais que o movimento pode alcançar é ainda grande. Mas o que já aconteceu para uma larga faixa da sociedade espanhola foi uma mudança de atitude: mais crítica, mais activa e mais responsável
