Um território ainda em busca de paz

Durante muito tempo tudo o que era basco tinha uma conotação negativa em Espanha. A utilização da violência pela ETA em nome da defesa do povo basco dividiu a sociedade e deixou o terror como marca de identidade de toda uma região. Cinco anos depois do fim da luta armada, o País Basco procura ainda a pacificação, com a independência no horizonte.

 

A manhã era fria e chuvosa. Fernando Múgica, histórico militante socialista, saiu do escritório de advogados que ocupava na rua Prim, no centro de San Sebastián, dirigindo-se a um parque de estacionamento. Mas não chegou ao destino. Pelo caminho foi interceptado por dois indivíduos encapuzados e armados. Eram membros da ETA. Um deles desferiu-lhe um disparo na nuca.

 

Também advogado, o filho mais novo do político basco assassinado em fevereiro de 1996 trabalha hoje no mesmo escritório que ocupava o pai, onde recebe o JN. Rubén Múgica conhece bem os motivos que o tornaram num alvo para o grupo armado. “O meu pai era um dirigente histórico do PSOE, muito posicionado politicamente contra qualquer negociação com os terroristas. O atentado aconteceu num contexto em que o grupo tinha começado a ordenar o assassinato de pessoas relevantes dentro do PP e do PSOE”.

 

Fernando Múgica foi uma das 829 vítimas que a ETA fez durante mais de cinco décadas de atividade em nome da libertação do povo basco.

 

A 20 de outubro de 2011, Espanha recebia com alívio a difusão do vídeo em que o grupo anunciava o fim definitivo da luta armada. Terminava para muitos um longo pesadelo marcado pela violência, pelo medo e pelas ameaças. Para outros, abriam-se novas oportunidades políticas, vinculadas à defesa da democracia. [vídeo Fim da ETA]

 

Cinco anos depois, a sociedade basca avança no caminho da normalização. Mas a memória da violência está ainda presente numa região que não conheceu um verdadeiro processo de paz. Cinco anos depois, a organização etarra ainda não se dissolveu e o País Basco continua a ser o território da Europa Ocidental com maior número de forças de segurança por habitante.

 

Tanto o Partido Popular como o PSOE continuam a negar-se a estabelecer negociações oficiais com a ETA porque rejeitam reconhecer os motivos políticos por trás da organização armada. E um processo de paz clássico deixaria à vista “as causas do conflito”, aponta Julen Arzuaga, deputado no parlamento basco pela coligação independentista EH Bildu. [foto La Paz es Posible. Legenda foto: Cartaz com a frase “A Paz é Possível”, no centro de San Sebastián]

 

O problema basco

As origens da ETA remontam à época da ditadura de Francisco Franco, que reprimiu com mão de ferro tudo o que se relacionava com a cultura basca, em

especial proibindo a utilização do idioma local, o euskera, a única língua de origem não indo-europeia falada na Europa Ocidental.

 

A repressão leva ao exílio de numerosos bascos, nomeadamente para França. Numa época de agitação armada, é no seio deste exílio político que se inicia uma resistência antifranquista com o objetivo de lutar pela liberdade para o povo basco: a organização Euskadi Ta Askatasuna (ETA), uma expressão que significa País Basco e Liberdade. Durante os anos 60 e 70, o grupo assassina sobretudo altos cargos do Estado, nomeadamente o presidente do Governo, Luis Carrero Blanco, conseguindo então um importante apoio popular.

 

Quando morre Franco, em 1975, a ETA continua em atividade: “fizeram uma leitura estilo Gattopardo: mudou tudo para não mudar nada. Os corpos policiais são os mesmos, os juízes são os mesmos. A Constituição [de 1978] é aprovada em referendo, mas no País Basco não é aceite”, conta Ioseba Landa, historiador basco.

 

Começa aí a época mais sangrenta do conflito. No ano de 1980, a ETA chega a matar em média uma pessoa a cada 60 horas. Tem início também a chamada “Guerra Suja” com os Grupos Antiterroristas de Liberação (GAL), organizados pelo próprio Estado espanhol para fazer assassinatos seletivos de militantes da ETA ou de pessoas próximas à organização. “Em vez de desmobilizar, a atividade dos GAL acabou por reforçar o conflito”, prossegue Landa. [Foto Pasaia. Legenda foto: Desenho das silhuetas de quatro militantes da organização armada Comandos Autónomos Anticapitalistas assassinados pela Polícia espanhola em 1984 em Pasaia, no País Basco.]

 

Um guerra que nunca foi uma guerra

A ideia de conflito é rejeitada, contudo, tanto por Rubén Múgica como pelos dois principais partidos espanhóis: PP e PSOE. “Aqui nunca houve uma guerra. Houve uma perseguição totalitária provocada por uma organização criminosa contra cidadãos indefesos. Durante mais de 15 anos precisei de proteção policial, enquanto dirigentes da antiga Herri Batasuna e do nacionalismo basco andavam pela rua com total tranquilidade”, diz o filho do advogado socialista assassinado há 20 anos pela ETA. Múgica lamenta, por isso, que elementos da chamada esquerda abertzale, marquem agora presença nas instituições e celebra que pelo menos Arnaldo Otegi, o líder histórico da formação, tenha sido inabilitado como candidato depois de cumprir seis anos e meio de cadeia. [Foto Rubén Múgica. Legenda foto: Rubén Múgica é filho do advogado socialista Fernando Múgica, assassinado pela ETA em 1996.]

 

Acusada de vinculação com a ETA, a esquerda independentista basca foi ilegalizada em 2003 e só regressou aos parlamentos em 2011, após uma refundação. O novo partido, intitulado Sortu integrou-se na coligação EH Bildu e assumiu a nova estratégia: “entendemos que este país precisava que a violência saísse da equação política” diz ao JN Julen Arzuaga, para quem a “via institucional, a ativação popular e a mobilização social” representam o caminho a seguir.

 

Ao mesmo tempo, o deputado da EH Bildu, que nos últimos anos participou em várias homenagens feitas às vitimas da ETA, não tem problemas em afirmar que aquilo que estas pessoas “sofreram não devia ter sofrido ninguém. É algo que nunca deveria ter acontecido”.

 

A perspetiva das vítimas continua, no entanto, a causar controvérsia: “até aqui tivemos uma legislação que sempre deu muitos direitos às vítimas da ETA, mas é preciso haver igualdade em termos de reparação e reconhecimento das vítimas”, afirma o deputado abertzale, lamentando que as vítimas dos GAL e dos chamados excessos policiais não sejam equiparadas às de terrorismo. [Foto Julen Arzuaga. Legenda foto: Julen Arzuaga é deputado no Parlamento basco pela coligação independentista EH Bildu.]

 

O fim da violência

O facto da esquerda abertzale ter compreendido que a luta armada já não fazia sentido contribuiu para o anúncio unilateral de uma ETA debilitada que há cinco anos colocou um ponto final na violência terrorista. “Durante muito tempo, sobretudo nos últimos anos do franquismo, a ETA tinha um apoio social importante. Mas esse apoio foi diminuindo e a ETA foi ficando cada vez mais sozinha, fora da sociedade”, explica Iker Usón, professor de Ciência Política da Universidade de Deusto. “A cidadania basca percebeu que a ETA era um autêntico obstáculo para qualquer objetivo político”. O facto de que alguém matasse em nome da cultura basca, do povo basco, dos direitos do povo basco “contaminava tudo à sua volta” aponta o docente.

 

O docente entende que a histórica mudança de estratégia operada no seio dos abertzales, que entenderam que a única via deve ser a institucional, se deveu à influência da própria sociedade, uma vez que “cada vez mais gente defende unicamente os direitos humanos”.

 

Talvez por isso um dos temas que mais mobilização social origina hoje no País Basco tenha a ver com os direitos dos presos da ETA, algo bem visível nas ruas, especialmente na região de Guipúzcoa, onde é fácil encontrar nas varandas bandeiras com a inscrição Extera, que significa “voltar a casa”, em euskera. A bandeira é o símbolo de um longo protesto contra a política de dispersão que o Estado espanhol aplica aos presos da ETA, mantendo-os em prisões localizadas longe do País Basco. “Assistimos a uma política penitenciária que parece de um tempo de guerra e não de paz”, diz Arzuaga. “Desde que a ETA decretou o final da luta armada há uma incapacidade de reincidir do preso. Achamos que essa impossibilidade deveria ter efeito jurídico para que o preso tenha benefícios penitenciários”, argumenta. [foto da bandeira Etxera. Legenda foto: Bandeira com a inscrição Etxera, “voltar a casa”, numa varanda do País Basco.]

 

Para Rubén Múgica, contudo, a defesa dos presos da ETA chega a ser ofensiva. “Há uma parte da sociedade que continua a apoiar terroristas condenados”, denuncia o advogado, lamentando que o Estado nada faça para impedir o que considera “homenagens aos presos”.

 

A vitória das ideias

Abandonadas as armas, o certo é que nos últimos cinco anos a vida se normalizou no País Basco. Rubén Múgica já não precisar de escolta e deixou de olhar para trás

quando passeia pela rua. “A realidade é muito mais amável. A vida ordinária tranquilizou-se muito nos últimos anos: já não existe a mesma tensão que havia antes”. O confronto e a divisão social também diminuíram: “os bascos já não têm de continuar a posicionar-se de um lado ou do outro porque muitos deles estão simplesmente a favor da vida, da democracia”, aponta Iker Usón. [Foto Iker Usón. Legenda foto: Iker Usón participa no projeto Ahotsak, que levou o tema do terrorismo para a Universidade.]

 

O docente universitário participa num projeto lançado no ano passado pelo governo regional basco, liderado pelo PNV, que visa levar o debate sobre o terrorismo para as salas de aula. Embora seja recente, Usón já tira algumas conclusões: “para os jovens o tema não é tanto um tabu. Há muito menos crispação e menos intensidade no debate”.

 

Em vez de falar em vencedores e vencidos, prefere refletir sobre que ideias triunfaram. “A ideia do uso da violência com fins políticos foi vencida. Também a ideia de que o Estado pode ter um grupo parapolicial para derrotar outro grupo foi derrotada”. [Foto ETA dissolución. Legenda foto: Cinco anos depois de anunciar o fim da violência, a ETA ainda não se dissolveu]

 

Quanto a Julen Arzuaga, prefere falar de normalização política. “Tu tens umas ideias, eu tenho outras, é bom que elas se possam defender pelas vias democráticas”. Mas para o deputado abertzale ainda falta algo: “o reconhecimento de Euskal Herria [o território onde se fala o idioma basco] como nação. Que haja referendos, para que as pessoas se possam posicionar”.

 

Após as recentes eleições regionais, realizadas a 25 de setembro, são agora três os partidos que defendem o direito de autodeterminação: Partido Nacionalista Basco (o vencedor), EH Bildu e Podemos, o que constitui a grande maioria do parlamento regional. Num momento em que o desafio independentista catalão continua vigente, é de prever que o confronto com o Estado espanhol se prolongue. Agora, unicamente pela via democrática.